Friday, January 09, 2004

Vê-se com cada merda(s) na televisão

Há momentos em que me custa ver televisão.
Anteontem ocorreu mais um desses momentos: na SIC Notícias, Leonor Beleza e Maria de Belém Roseira, ambas ex-ministras de saúde, discutiam a retoma económica e o orçamento de estado.

Duas coisas apenas. A primeira, e mais óbvia, tem a ver com o facto de se pôr duas não-economistas (como ambas pretextaram diversas vezes) a discutir economia. Para quê?

A outra questão é, no meu entender, bem pior. Já sabemos que ninguém é culpado de coisa alguma perante a lei, até ser julgado e condenado. No entanto, há a responsabilidade cível e/ou criminal, e há responsabilidades políticas. São duas coisas distintas. Ora, uma mulher, que, condenada ou não (e quanto a isto já lá vamos) condenou à morte 35 hemofílicos, não pode voltar ao parlamento como se nada fosse. Sem sequer um pedido de desculpas! Muito menos me pode entrar em casa, via televisão, às dez da noite, para vir falar - e ainda por cima - de coisas que não percebe! Haja pudor!

Eu sei que para o Pinto Balsemão custava-lhe negar o acesso à digníssima deputada; é amigo, é fundador do partido, precisa de apoios para rebentar com a concorrência televisiva, etc. Mas são estas as questões que separam os Berlusconis dos outros, as pessoas de bem.

Quanto ao processo que corria nos tribunais transcrevo a seguinte explicação, dada pela vice-presidente da Associação Portuguesa de Hemofílicos:

“Nós entendemos que o processo dos hemofílicos só prescreve em 2007, tal como sustentou a dra. Maria José Morgado no recurso para o Supremo, dado que houveram interrupções que não foram contadas. Refiro-me ao tempo – quase dois anos - em que o processo esteve parado no Tribunal Constitucional. Tal como a dra. Maria José Morgado, nós também entendemos que esse tempo não devia contar. E se somarmos todas as suspensões, chegamos a 2007. (...)

Soubemos que os produtos não estavam em condições em 1986, através de uma publicação da Associação Austríaca de Farmácias. Nessa publicação, o Ministério da Saúde austríaco fez uma vistoria a esse laboratório e encontrou derivados do plasma infectados com o vírus da hepatite B e outros lotes com excesso de pirogénios. Alertámos imediatamente a, na altura, ministra da Saúde, Leonor Beleza.

Disseram-nos para conseguirmos o despacho autenticado do Ministério da Saúde austríaco. E que se o conseguíssemos não voltariam a adquirir produtos derivados do plasma desse laboratório. Conseguimos esse despacho, devidamente autenticado, antes da segunda adjudicação, em 1987. Mesmo assim, a dra. Leonor Beleza não nos deu qualquer importância e o Ministério da Saúde continuou a comprar produtos à Plasmapharm Sera. E um desses produtos era o Factor VIII, imprescindível para os hemofílicos. (...)

O passo seguinte foi fazermos análises na Áustria a um dos lotes do Factor VIII, concretamente o nº 810536. E em Novembro de 1986, um instituto estatal da Áustria responde-nos que o Factor VIII, que estava a ser utilizado em Portugal, tinha anticorpos do vírus da SIDA. Informámos logo a dra. Leonor Beleza. Mesmo assim, o Factor VIII desse lote continuou a ser utilizado até se esgotar – eram para vir 1500 frascos, mas só chegaram 500 a Portugal – em 1987. Não foi retirado dos hospitais.

A dra. Leonor Beleza soube dos resultados das análises. Prova disso é que, no dia 12 de Novembro enviámos-lhe um telefax. E, nos autos, esse telefax aparece com uma anotação da dra. Leonor Beleza, na qual diz: “Pedir à minha mãe que me informe sobre o que se passa”. Esta nota tem a data de 19 de Dezembro. Na altura a mãe da ministra da Saúde, dra. Maria dos Prazeres Beleza, exercia o cargo de Secretária-Geral do Ministério da Saúde. Curiosamente, a dra. Leonor Beleza, em Tribunal, afirmou que não se lembrava de nada do que se passou. Já a mãe, que à data estava a acompanhar o assunto, veio dizer, também no tribunal o seguinte: “Esses produtos sucederam-se no tempo com grande frequência, sempre juntando a APH novos elementos (...) por outro lado, nunca houve insistências telefónicas que acompanhassem os pedidos escritos de modo a que a respondente fosse forçada a marcar a dita reunião”. (...)

Foram tratados com esse lote contaminado 35 pessoas, identificadas no despacho de acusação.

Sei que 23 já faleceram, por causa do vírus da SIDA. A maioria com idades compreendidas entre os 18 e os 30/35 anos. Temos os certificados de óbito dessas mortes, onde está escrito que morreram por causa do vírus da SIDA. A dra. Leonor Beleza é responsável pela morte de 23 pessoas e não lhe aconteceu nada. Ela não deu ouvidos aos nossos avisos. Ela tem mesmo de ser responsabilizada por essas mortes. E os outros 12 têm morte anunciada. (...)

A Associação Portuguesa de Hemofílicos pretende apenas justiça. Não queremos dinheiro. Os 35 hemofílicos contaminados com o vírus da SIDA já foram indemnizados pelo Estado, com 12 mil contos cada um, através de um Tribunal Arbitral que nos custou muito a conseguir. Infelizmente, a dra. Leonor Beleza tem contado com a influência dos políticos. Até de Mários Soares. Mas ela há-de ir a julgamento. Nem que seja no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.”


Entrevista com Maria de Lurdes Fonseca
Correio da Manhã, 23/07/2003

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