Tuesday, November 11, 2003

Um dia em Santa Maria

José Vítor Malheiros escreveu hoje no Público um artigo de opinião sobre um dia que passou nas emergências do hospital do Santa Maria. Sem peias, vou reproduzir aqui o artigo na íntegra. O autor vai concerteza perdoar-me.


Um Dia em Santa Maria
Por JOSÉ VÍTOR MALHEIROS
Terça-feira, 11 de Novembro de 2003

São 11h45 quando entro na Urgência do Hospital de Santa Maria, a acompanhar um familiar que sofreu uma queda. Mandam-nos para uma sala de espera e dizem-me que temos de esperar que nos chamem para ir à triagem. Um quadro branco afixado na parede tem escrito em cima "Tempo de espera". Na coluna da esquerda tem escritos os códigos que representam a gravidade de cada doente ou acidentado: "Vermelho", "Laranja", "Amarelo", "Verde", "Azul". À frente de cada cor, na coluna seguinte, está assinalado o tempo médio de espera. À frente de "Verde" está escrito "35 minutos", todas as outras cores têm um traço à frente. Pergunto o que significa o traço. Quer dizer que não há tempo de espera? Que não se sabe? Dizem-me que quer dizer que não há qualquer espera. Mas a sala de espera está cheia! A empregada no balcão de informações encolhe os ombros e volta-se para um recém-chegado.

As pessoas na sala de espera começam a desfiar as suas queixas para o ar. Uma delas espera há uma hora, outra quase há três. Volto ao balcão de informações e pergunto como se explica a diferença entre o quadro e a realidade. A funcionária finge que não me ouve mas um segurança explica-me que o tempo marcado na tabela é o tempo que leva um doente da triagem até ser visto pelo médico. O tempo que se espera até à triagem não é contabilizado. É excelente para as estatísticas! Tão bom como a maneira de contabilizar as listas de espera de cirurgia - só se contam os casos que se quer, da maneira que se quer, até se chegar a um número confortável.

Às 12h50 um enfermeiro vem actualizar o quadro. Apaga os 35 minutos que estavam na mesma linha que "Verde" e escreve um traço. Digo-lhe que estou à espera há uma hora e cinco minutos e que o seu quadro é uma fraude. Responde-me a mesma coisa que o segurança: o quadro mede o tempo desde a triagem até ao médico. Repito-lhe que o quadro induz os utentes em erro e que não passa de uma fraude. Responde-me que é enfermeiro, que não lhe compete ouvir a minha reclamação, que posso falar às funcionárias no balcão de atendimento.

Às 13h20 chamam o nome do meu familiar. Entramos na triagem. Um interrogatório sumário, uma medida de tensão, nenhuma observação. Regresso à sala de espera. Chamam-nos de novo passados quatro minutos. Uma hora e 40 minutos depois de ter visto escrito preto no branco que na Urgência de Santa Maria ninguém espera sequer um minuto para ser atendido, vemos à nossa frente o primeiro médico.

Interrogatório, exame, a papeleta começa a encher-se de pedidos de exames, de análises, de notas. Do médico passamos para uma sala de tratamentos. Às 14h00 o meu familiar é enviado para o Serviço de Observação, onde já não o posso acompanhar. Dizem-me para esperar no corredor, pois um médico virá falar comigo, para me pedir pormenores da história clínica. Espero meia hora, uma hora, duas horas. Ando de um lado para o outro frente ao guichet da enfermeira para que veja que estou por ali, de vez em quando pergunto quando poderei falar ao médico, peço informações. A dada altura a enfermeira, sempre delicada, explica-me que é mais urgente tratar os doentes que falar aos familiares. Claro que concordo, mas os dados da história clínica não serão necessários?

Às 17h30 vejo passar, numa maca, a pessoa que acompanho. Dizem-me que vai fazer uma ecografia e uma TAC. Posso acompanhá-la se quiser. Deixam-nos na sala de espera da Imagiologia. Um pouco depois das 19h00 faz a ecografia. Às 19h13 vai fazer a TAC.

Estamos no hospital há sete horas e meia mas a tabela afixada na urgência diz que o nosso tempo de espera é zero minutos. Nunca saberei quanto tempo demoraria todo o processo até ao diagnóstico porque a minha mãe morreu na mesa da TAC durante o exame.

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